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28.5.11

Carlos Drummond de Andrade, Science Fiction (1969)

O marciano encontrou-me na rua e teve medo de minha impossibilidade humana. 
Como pode existir, pensou consigo, um ser que no existir põe tamanha anulação de existência? 
Afastou-se o marciano, e persegui-o. Precisava dele como de um testemunho. 
Mas, recusando o colóquio, desintegrou-se no ar constelado de problemas. 
E fiquei só em mim, de mim ausente.
 
Carlos Drummond de Andrade, Science Fiction (1969)

A vida humanizada. Eu havia humanizado demais a vida.

Uma galinha - Clarice Lispector.

Uma Galinha -  Clarice Lispector.

ERA uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém. Ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou -- o tempo da cozinheira dar um grito -- e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporádicamente algum esporte e de almoçar vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta hesitante e trêmula escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado em telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser.É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma das asas através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos.
Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e asim ficou respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração tão pequeno num prato solevava e abaixava as penas enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de ser um ovo. Só a menina estava perto e assistiu tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento despregou-se do chão e saiu aos gritos:
--Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou a cabeça de uma galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:
--Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!
--Eu também!jurou a menina com ardor.
A mãe, cansada, deu de ombros.
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a de sobressalto.
Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga -- e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito contente, Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho -- era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo doas séculos.
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se os anos.

23.5.11

Posso ser bela como a lua
Mas confesso que não tenho fases
Radiante como as estrelas que aparecem no céu
Mas não possuo aquele brilho constante
Ardente como o sol
E demasiadamente fria como as chuvas de inverno
Eu posso até me fantasiar de vento
Mas nunca poderei voar
Não sou grande como os sete mares
Mas sou do tamanho do monte Everest
Sou previsível como a neve, a chuva e o sol em dias de verão
Mas sou abalável como os terremotos e vulcões
Vulcões estes que entram em erupção dentro de mim
Mas sou gelada assim como um iceberg
Faço fronteiras com você e com o mundo inteiro
Mas no meu coração ainda há limites
Assim sendo, serei a primeira folha da primavera iluminando seu setembro
Pois assim será, quando eu tocar seu coração e cair de um penhasco
Isso sim, no último dia de outono.

A vida humanizada. Eu havia humanizado demais a vida.

7.5.11

Eu não posso simplesmente pegar uma serra elétrica
Massacraria eu mesma e mudaria as minhas ideologias
Prezo-as até agora, difícilmente elas serão mudadas
Não posso ferir o mundo que me acolheu
Isso é mais do que eu mesma
É tudo que veio me guiando até agora
Com todas a forças que eu tenho, irei viver
De acordo com as minhas necessidades, conseguirei passar por esse obstáculo